Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís

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Ah liberdade presa, ah razão cega,

Não vês que é doudice esperar mais

Bem, que sempre está perto, e nunca chega.

 

Que eu saiba, está por editar a obra poética atribuível ao Infante D. Luís (1506-1555). Este filho do rei D. Manuel I, irmão do rei D. João III, e pai de D. António Prior do Crato, homem de armas, (combateu na expedição de Carlos V a Tunes contra o corsário Barba-Roxa em 1535), foi escritor e poeta na linha dos espíritos renascentistas do tempo. É-lhe atribuída a autoria, não sem controvérsia, de alguns sonetos, quase todos incluídos por Manuel de Faria e Sousa na obra poética de Camões, com o conhecido argumento: obra tão formosa não pode ser senão de Camões! 

 

Com a curiosidade espicaçada sobre a obra provável do Infante D. Luís, quando andei às voltas com o soneto Horas breves do meu contentamento, alvo de um circunstanciado artigo anterior, decidi, para a minha inteligência de leitor, reunir aqui o que de essencial fui tendo notícia. O que encontrei, além do soneto referido, foram 15 outros sonetos repassados de um pensar filosófico com a crença religiosa em pano de fundo. 

 

De atribuição quase unânime, e publicado em  A Fenix Renascida III é o soneto À rédea solta corre o pensamento. Acrescentam os estudiosos (1), com base nos diversos manuscritos conhecidos, a autoria muito provável de mais cinco sonetos publicados por Manuel de Faria e Sousa na sua edição comentada das Rimas Várias de Luís de Camoens. São eles os sonetos da Centúria III com os números 31, 33, 37, 38, 39

Carolina Michaelis de Vasconcelos no artigo O texto das Rimas de Camões e os apócrifos, recolhido numa edição dos seus artigos dispersos(2) refere, com base numa publicação de Wilhelm Storck, a atribuição provável ao Infante D. Luís, da autoria dos sonetos da Centúria III nºs 31-35, 37-44, 46, onde se incluem, portanto, os anteriores.

Serão estes catorze sonetos acrescentados do soneto de  A Fenix renascida III que a seguir transcreverei.

 

*

À rédea solta corre o pensamento,

Um só cuidado mil cuidados cria,

E quantas Torres arma a fantasia,

Todas vão acabar num fundamento.

 

Se quem me prometeu contentamento,

As ocasiões dele me desvia,

Como poderei crer, que em algum dia

Verei ao que desejo o cumprimento.

 

Bem vejo eu dos enganos os finais,

Porém como à vontade amor se entrega,

Querer desenganar-se é por demais.

 

Ah liberdade presa, ah razão cega,

Não vês que é doudice esperar mais

Bem, que sempre está perto, e nunca chega.

 

in A Fenix Renascida III.

 

Os sonetos que seguem constam todos da edição das Rimas Várias de Luís de Camoens, comentadas por Manuel de Faria y Sousa com ortografia actualizada. A numeração que os antecede é a usada na Centúria III desta edição.

 

31

Imagens vãs me imprime a fantesia;

discursos novos acha o pensamento,

com que dão à minh’ alma grão tormento

cuidados de cem anos num só dia.

 

Se fim grande tivessem, bem seria

responder a esperança ao fundamento;

mas o Fado não corre tanto a tento

que reserve à razão sua valia.

 

Caso e Fortuna podem acertar;

mas se por acidente, dão vitória,

sempre o favor da Fama é falsa historia.

 

Excede ao saber determinar;

e a constância se deve toda a gloria,

o ânimo livre é digno de memoria.

 

32

Quanta incerta esperança, quanto engano!

Quanto viver de falsos pensamentos,

pois todos vão fazer seus fundamentos

só no mesmo em que está seu próprio dano!

 

Na incerta vida estribam de um humano;

dão crédito a palavras que são ventos;

choram depois as horas e os momentos

que riram com mais gosto em todo o ano.

 

Não haja em aparências confianças;

entende que o viver é de emprestado;

que o de que vive o mundo são mudanças.

 

Mudai, pois, o sentido e o cuidado,

somente amando aquelas esperanças

que duram pera sempre com o amado.

 

33

Mal que de tempo em tempo vás crecendo,

quem te visse de um bem acompanhado

a vida passaria descansado;

da morte não temera o rosto horrendo.

 

Se os vãos cuidados fora convertendo

em suspiros que dão outro cuidado,

oh, quão prudente! Oh, quão afortunado

a capela de louro irá tecendo!

 

Tempo é já de esquecer contentamentos

passados, co a esperança que passou,

e de que triunfem novos pensamentos.

 

A fé, que viva na alma me ficou,

dê já fim aos caducos ardimentos

a que o passado bem se condenou.

 

34

Oh! quanto melhor é o supremo dia

da mansa morte que o do nascimento!

Oh! quanto melhor é um só momento

que livra de anos tantos de agonia!

 

De alcançar outro bem cesse a porfia;

cesse todo aplicado pensamento

de tudo quanto dá contentamento,

pois só contenta ao corpo a terra fria.

 

O que do seu fez Deus seu despenseiro

tem mais estreita conta que lhe dar:

então parece rico o ovelheiro.

 

Triste de quem no dia derradeiro

tem o suor alheio por pagar,

pois a alma há-de vender pelo dinheiro!

 

35

Como podes, ó cego pecador,

estar em teus errores tão isento,

sabendo que esta vida é um momento,

se comparada com a eterna for?

 

Não cuides tu que o justo Julgador

deixará tuas culpas sem tormento,

nem que passando vai o tempo lento

do dia de horrendíssimo pavor.

 

Não gastes horas, dias, meses, anos,

em seguir de teus danos a amizade,

de que depois resultam mores danos.

 

E pois de teus enganos a verdade

conheces, deixa já tantos enganos,

pedindo a Deus perdão com humildade.

 

37

De Babel sobre os rios nos sentámos,

de nossa doce pátria desterrados;

as mãos na face, os olhos derribados,

com saudades de ti, Sião, chorámos.

 

Os órgãos nos salgueiros pendurámos,

em outro tempo bem de nós tocados;

outro era ele, por certo, outros cuidados.

Mas, por deixar saudades, os deixámos.

 

Aqueles que cativos nos traziam,

por cantigas alegres perguntavam.

«Cantai – nos dizem – hinos de Sião».

 

Sobre tal pena, pena tal nos dão;

pois tiranicamente pretendiam

que cantassem aqueles que choravam.

 

38

Sobre os rios do Reino escuro, quando

tristes, quais nossas culpas o ordenaram,

lágrimas nossos olhos derramaram

por ti, Sião divina, suspirando;

 

os que iam nossas almas infestando

de contino em error, as cativaram,

e em vão por nossos salmos perguntaram,

que tudo era silêncio miserando.

 

Dizendo estamos: «Como cantaremos

as aceitas canções a Deus benino,

quando a contrários seus obedecemos?»

 

Mas já, Senhor só Santo, determino,

deixando viciosíssimos extremos,

os cantos prosseguir de amor divino.

 

39

Em Babilónia, sobre os rios, quando

de ti, Sião sagrada, nos lembramos,

ali com grão saudade nos sentamos,

o bem perdido, míseros, chorando.

 

Os instrumentos músicos deixando,

nos estranhos salgueiros pendurámos,

quando aos cantares, que já em ti cantámos,

nos estavam imigos incitando.

 

Às esquadras dizemos inimigas:

«Como hemos de cantar em terra alheia

as cantigas de Deus, sacras cantigas?

 

Se a lembrança eu perder que me recreia

cá nestas penosíssimas fadigas,

oblivioni detur dextra mea».

 

40

Aponta a bela Aurora, luz primeira,

que a grão nova nos deu do claro dia.

Vesti-vos, corações, já de alegria,

e recebei da vida a Mensageira.

 

Da humana redenção nace a terceira.

Alegra-te, divina monarquia;

da terra terás sempre a companhia,

do Céu verás também a nossa feira.

 

De tal obra se espanta a Natureza,

confuso fica de temor o inferno,

vendo a que nace isenta da defesa.

 

Lei geral era posta desde eterno.

Mas o Senhor da lei, toda limpeza,

para o sacrário seu guardou materno

 

41

Porque a Terra no Céu agasalhasse,

o Céu na Terra Deus agasalhou;

lá não cabendo, cá se acomodou,

por que lá, de cá indo, se alargasse.

 

Por que o homem a ser deus por Deus chegasse

por o homem a ser homem Deus chegou;

seu divino poder tanto humanou,

por que o humano em divino se tornasse.

 

Vede bem o que deu e recebeu:

não se perca um bem tanto da memória.

Deu-nos a vida; a morte padeceu.

 

Trocou por nossa pena a sua glória.

Deu-nos o triunfo que ele mereceu:

porque Amor foi autor desta vitória.

 

42

«Que estila a Árvore sacra?» — «Um licor santo».

«Para quem?» — «Para o género é humano».

«Que faz dele?»— «Um remédio soberano».

«Para quê?» – «Para a culpa e triste pranto».

 

«E que obra?» — «Reduzir Luzbel a espanto».

«Porquê?» — «Porque cum pomo fez grão dano».

«Que foi?» — «A morte deu com um engano».

«Tanto pôde?» — «Sem falta pode tanto».

 

«Quem sobe a ela?» — «Quem do Céu deceu».

«A que dece?» — «A subir a criatura».

«Que quis da terra?» — «Só levá-la ao Céu».

 

«É escada para ir lá?» — «É a más segura».

«Quem o obrigou?» — «De Amor só se venceu».

«Que amava este Feitor?»– «Sua feitura».

 

43

Ó arma unicamente só triunfante.

propugnáculo só de nossas vidas,

com que foram ganhadas as perdidas

com que o Tártaro horrendo andava ovante!

 

Siga-se esta bandeira militante,

por quem são tais vitórias conseguidas,

por quantas almas, delas divertidas,

no Ponente erram cá, lá no Levante.

 

Ó árvore sublime e marchetada

de branco e carmezi, de ouro embutida,

dos rubis mais preciosos esmaltada,

 

de troféus mais claros guarnecida!

A vida à Morte vimos em ti dada,

para que em ti se desse a Morte à vida.

 

44

Aos homens um só Homem pôs espanto,

e o pôs a toda a humana natureza,

que de homem teve o ser, de anjo a pureza,

porque antes que nacesse era já santo.

 

Profeta foi na Mãe e, enfim, foi tanto

que entre os nacidos houve a mor alteza;

que a luz, sem a ver, viu a Grandeza,

tendo por trompa o Verbo Sacrossanto.

 

Aquela voz foi ele, sonorosa,

no côncavo dos orbes ressonante,

e que a Carne inculpável bautizou.

 

Quem do mor Pai ouviu a voz amante;

quem a sutil pregunta, industriosa,

com sincera reposta sossegou.

 

46

Como louvarei eu, Serafim santo,

tanta humildade, tanta penitência,

castidade, e pobreza, e paciência,

com este meu inculto e rudo canto?

 

Argumento que às Musas pões espanto,

que faz muda a grandíloqua eloquência.

Ó imagem, que a Divina Providência

de si, viva, em vós fez para bem tanto!

 

Fostes de santos uma rara mina;

almas de mil a mil ao Céu mandastes

do mundo que, perdido, reformastes.

 

E não roubáveis só com a doutrina

as vontades mortais, mas a divina,

pois os seus rubis cinco lhe roubastes.

 

Nota bibliográfica

Sonetos transcritos em ortografia modernizada de Luís de Camões, Lírica Completa II, prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, Lisboa, 1980. São muito úteis as notas  de fim de página em cada soneto.

 

Servindo o artigo apenas propósitos de leitor e não atitude de estudioso, poupo-me, e poupo os leitores, à bibliografia exaustiva de edições e manuscritos de cancioneiros de mão e outras fontes. Fica, pois, a bibliografia essencial a partir da qual o leitor interessado pode voar para outras paragens:

Rimas Várias de Luís de Camoens, comentadas por Manuel de Faria y Sousa, Tomo I y II, Lisboa, Año 1685. Preciosos os comentários a cada poema.

A Fenix Renascida III, ou Obras Poéticas dos melhores engenhos portugueses, segunda vez impresso e acrescentado por Mathias Pereira da Sylva, Lisboa, 1746. Existe edição recente com ortografia actualizada segundo o novo acordo ortográfico, edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Série Cultura Portuguesa, Lisboa, 2017.

(1) Dicionário de Luís de Camões, coordenação Vitor Aguiar e Silva, Editorial Caminho, 2011, artigo Infante D. Luís.

(2) Carolina Michaelis de Vasconcelos, Disperso, Originais Portugueses III, Estudos camonianos, Edição da Revista Ocidente, Lisboa, s/d, pg 19.



Abre o artigo a imagem de um fresco em Siena por Simone Martini (1280/85-1344) representando Guidoriccio da Fogliano executado c. 1330.

 

Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro

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Uma boa cama é um auxiliar precioso para tornar memoráveis peripécias onde os jogos de prazer começam e o repouso final apetece. A cama venturosa, testemunha do gozo e da folia que o nosso autor de hoje descreve no soneto que a seguir o leitor encontra em tradução minha, poeta anónimo do siglo de oro (séc XVI/XVII) espanhol, terá talvez sido diferente da cama de Van Gogh representada a abrir. Enfim, se a ocasião surge, obstáculos destes podem sempre transpor-se com sucesso, qual seja uma cama menos confortável.

O soneto é um caso notável da adequação de uma linguagem sensível e intensa, a um assunto que noutros resvala frequentemente para o procaz.

Basta de conversa. Terminemos com a nossa já conhecida citação de Camões:

Melhor é experimentá-lo que julgá-lo*,

Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.

Lusíadas Canto IX, estrofe 83

 

Soneto

Oh doce noite! Oh cama venturosa!

Testemunhas do gozo e da folia,

Dizei como vós vistes a porfia

Daquela dama doce e amorosa.

 

Como ela se mostrava rigorosa!

Como de minhas mãos ela fugia!

Como tantas injúrias me dizia,

Minha doce inimiga cautelosa!

 

Porém, como depois me regalava,

Cerrando-me nos braços amorosos,

E abrindo aquelas pernas delicadas!

 

Como suave ela se meneava! 

Que beijos ela dava, e saborosos!

Oh as palavras! tão açucaradas!

 

Tradução de Carlos Mendonça Lopes

 

Soneto original

¡Oh dulce noche! ¡Oh cama venturosa!

Testigos del deleite y gloria mía,

decid qué os pareció de la porfía

de aquella dama dulce y amorosa.

 

¡Cómo se me mostraba rigurosa!

¡Cómo dentre mis manos se salía!

¡Cómo dos mil injurias me decía,

la dulce mi enemiga cautelosa!

 

Pero ¡Como después me regalaba,

cogiéndome en sus brazos amorosos

y abriendo aquellas piernas delicadas!

 

¡Con qué süavidad se meneaba!

¡Qué besos que me daba tan sabrosos!

¡Y qué palabras tan azucaradas!

 

* O verbo julgar tem aqui o significado de supor, pensar, imaginar. Cf. Dicionário de Morais.

O soneto existe transcrito em diferentes compilações com pequenas variações num ou outro verso.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Vincent van Gogh (1853-1890), Quarto em Arles, da colecção do museu Van Gogh, Amsterdão.

 

Um poema de Salvador Espriu

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Se na leitura imediata do poema de Salvador Espriu (1913-1985) que hoje transcrevo, podemos ler a actualidade de Espanha ao tempo do franquismo, quando as autonomias não eram reconhecidas e atentados e repressão eram parte do quotidiano, o poema permanece de leitura universal e intemporal no seu apelo à concórdia e ao diálogo na solução das divergências políticas que permanentemente atravessam os povos. 



Poema XLVI do livro La Pell de Brau, A Pele de Touro em português

 

Por vezes é forçoso e necessário 

que um homem morra por um povo,

mas nunca um povo inteiro há-de morrer

por um só homem:

recorda sempre isto Sepharad.

Faz que sejam seguras as pontes de diálogo

e procura compreender e estimar

a razão e as falas diversas de teus filhos.

Que lentamente nas sementeiras caia a chuva

e o ar passe qual mão estendida,

benigna e suave sobre os vastos campos.

Que Sepharad viva eternamente

na ordem, na paz e no trabalho,

na difícil e merecida 

liberdade.

 

Tradução de José Bento

in Poemas do Último Século antes do Homem, Antologia, Editorial Inova/o ouro do dia, Porto, 1979.

O poema foi também traduzido por Manuel de Seabra no livro Salvador Espriu, A Pele de Touro, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1975, com diferenças mínimas, mas suficientes para me decidir pela tradução de José Bento.

 

Uma última nota, talvez desnecessária: Sepharad, referida no poema, era a designação dada pelos judeus à Península Ibérica antes da sua expulsão pelos Reis Católicos de Espanha no século XV, e a seguir pelo rei D. Manuel I de Portugal como condição do seu casamento com uma princesa espanhola, daí o serem conhecidos como judeus sefarditas.



Abre o artigo a imagem de um mapa publicado em 1492 representando a Terra como supostamente seria de acordo com Ptolomeu. O mapa pertence à Hain Collection, Library of Congress Geography and Map Division.





Hesíodo e outros esclarecem-nos sobre as musas

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[As musas foram criadas] 

para que fossem esquecimento de males e alívio de aflições.                     55

Durante nove noites, então, a possuiu [Mnemósine] o prudente Zeus, 

tomando lugar no seu leito sagrado, longe dos Imortais. 

E quando, depois, passou o tempo devido e, com o volver das estações, 

se completaram os meses e muitos dias chegaram ao seu termo, 

ela deu à luz nove filhas de sensibilidade igual, às quais apenas o canto  60

preocupava, nos peitos, o coração isento de cuidados, 

in Hesíodo, Teogonia (55-61)

 

 

Desaparecidos os estudos sobre a cultura greco-latina dos cursos generalistas do ensino, hoje apenas estudiosos da especialidade a dominam. No entanto, para o individuo medianamente culto, esta ausência surge como uma falha, ficando tantas vezes leituras, obras plásticas, e visitas a lugares históricos, incompletamente apreendidas no seu significado intrínseco, e como nos podem aproveitar enquanto legado de uma vivência que está na raiz do nosso mundo ocidental. Hoje trago tão só uma pequena elucidação, talvez útil, para o leitor de poesia antiga. Nesta, é recorrente o termo musa ou musas como invocatória, ou fonte de uma qualquer inspiração adicional. E é exactamente à descodificação de quem são esses seres que convido o leitor. 

 

Filhas de Zeus e Mnemósine nascidas de nove noites de amor, no seu precioso Dicionário da Mitologia Grega e Romana, Pierre Grimal dá-nos um esclarecimento sucinto do que representam as Musas:

Musas: Existindo diversos mitos sobre as musas e sua origem, na época clássica grega impuseram-se as Musas de Helicon, na dependência de Apolo que as dirige. São geralmente nove e com o tempo receberam uma função específica:

Clio a história

Melpómene a tragédia

Talia a comédia

Euterpe a flauta

Terpsicore a poesia ligeira e a dança

Erato a lírica coral

Calíope a poesia épica

Urânia a astronomia

Polímnia a pantomina.

 

 

Caminhemos para trás, até ao séc. IV, e encontramos em Ausónio (310-395), poeta romano, no seu Idílio XX, a versão poetisada desta descrição de Pierre Grimal:

 

Ausónio — Idilio XX

Clio canta os feitos e dá vida ao passado.

Melpómene expande sua dor em clamor de tragédia.

A cómica Talia rejubila com a linguagem lasciva.

Euterpe com seu sopro, faz ressoar a flauta com doces acordes.

Terpsicore, com a cítara, suscita, ordena, aumenta as paixões.

Erato, segurando a lira, dança com o pé, o canto, o rosto.

Calíope confia aos livros cantos heróicos.

Urânia perscruta os movimentos do céu e os astros.

Polímnia tudo aponta com a mão, e seu gesto é uma linguagem.

A força da mente apolínea inspira todas essas musas:

sentado no meio delas, Febo abarca todas essas funções.

Tradução de João Pedro Mendes

in Construção e Arte das Bucólicas de Virgilio, Livraria Almedina, Coimbra, 1996.

 

 

Mas o leitor curioso que chegou até aqui, talvez ache interessante saber a origem remota da lenda sobre estes seres e suas atribuições. Hesiodo, o poeta grego que viveu entre os séc. VIII e VII a. C, em Teogonia conta-a assim:

 

Teogonia, Versos 36-87 e 96-103

Vá lá. então, comecemos pelas Musas, aquelas que a Zeus, seu pai, 

entoam hinos, alegrando-lhe o espírito imenso, na mansão do Olimpo, 

contando-lhe o presente, o futuro e o passado, 

em uníssono. Um canto inesgotável escorre-lhes

dos lábios, delicioso. E ilumina-se com um sorriso a morada do pai, 

Zeus, senhor do trovão, enquanto a voz cândida das deusas 

se eleva, fazendo vibrar o cimo do Olimpo coberto de neve 

e as moradas dos Imortais. Elas cantam com uma voz celestial, 

e, em primeiro lugar, glorificam com o seu canto a raça venerável dos deuses, 

desde as origens: aqueles a quem a Terra e o vasto Céu geraram, 

e os que deles nasceram, os deuses que concedem todas as dádivas; 

e depois, também, Zeus, pai dos deuses e dos homens, 

[a quem as deusas entoam hinos no início ^e no fim do seu canto^]

ele que entre os deuses detém o primeiro e maior poder; 

finalmente, é à raça dos homens e dos Gigantes poderosos 

que entoam hinos, alegrando o espírito de Zeus na mansão do Olimpo, 

as Musas Olímpicas, filhas de Zeus detentor da égide. 

Na Piéria, gerou-as, unida ao pai Crónida, 

Mnemósine, que reina nas colinas de Eleutéria, 

para que fossem esquecimento de males e alívio de aflições.

Durante nove noites, então, a possuiu o prudente Zeus, 

tomando lugar no seu leito sagrado, longe dos Imortais. 

E quando, depois, passou o tempo devido e, com o volver das estações, 

se completaram os meses e muitos dias chegaram ao seu termo, 

ela deu à luz nove filhas de sensibilidade igual, às quais apenas o canto 

preocupava, nos peitos, o coração isento de cuidados, 

junto ao mais alto dos picos do Olimpo coberto de neve. 

É lá que fazem luzir os seus coros e têm as suas belas moradas 

e junto delas habitam também as Graças e o Desejo, 

em ambiente de festa. Da sua boca se eleva uma voz melodiosa 

e cantam, glorificando as leis e sábios preceitos 

de todos os Imortais, fazendo ouvir sua encantadora voz.

Então, enquanto se dirigiam ao Olimpo, entoavam com bela voz 

um canto divino; e a terra negra ressoava ao som dos 

seus hinos e sob os seus pés ecoava um ritmo encantador,

quando se dirigiam para junto daquele que é seu pai; ele que reina no céu, 

senhor do trovão e do raio incandescente,

depois de, pela força, ter vencido o pai, Cronos, e de, bem, a cada 

um dos Imortais ter disposto as suas leis e fixado as competências. 

É este o canto das Musas, que têm no Olimpo sua morada 

as nove filhas nascidas do grande Zeus:

Clio e Euterpe, Talia e Melpómene,

Terpsícore e Erato,  Polímnia e Urânia, 

e Calíope, aquela que, entre todas, desempenha o mais importante papel.

É ela a que acompanha os reis veneráveis.

Aquele a quem as filhas do grande Zeus honraram, 

e a quem, de entre os reis de linhagem divina,  distinguiram à nascença,

a esse derramaram-lhe sobre a língua um doce orvalho

e dos seus lábios escorrem palavras doces como o mel; o povo todo 

fixa, então, nele os olhos quando traduz a lei divina 

em sentenças rectas. E ele, discursando, sem falhas, 

prontamente é capaz de apaziguar uma grande querela.

… Feliz, então, aquele a quem as Musas 

prezam; a esse corre-lhes dos lábios uma voz doce. 

Quando a alguém o luto recente ensombra o coração 

e o desgosto aflige o íntimo, então um aedo, 

sacerdote das Musas, glorifica com hinos os heróis de outrora 

e os deuses bem-aventurados, que são senhores do Olimpo, 

e, logo, ele esquece o sofrimento e de nenhum cuidado 

se lembra. Bem depressa a dádiva destas deusas o compensa.

 

O fragmento transcrito do poema Teogonia, de Hesíodo, foi retirado da edição conjunta de Teogonia e Trabalhos e Dias, de Hesíodo, publicada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda em 2005 na colecção Biblioteca de Autores Clássicos e da responsabilidade de Ana Elias Pinheiro – Teogonia, e José Ribeiro Ferreira – Trabalhos e Dias.

 

 

Termino este périplo com a poesia portuguesa. E é sem surpresa que na obra de Filinto Elísio (1734-1819), amante como foi da cultura clássica, vamos encontrar a glosa a este assunto das musas no poema Emprego das Nove Musas que a seguir transcrevo em ortografia modernizada:

 

 

Emprego das Nove Musas

1

Com opa e manto azul, de áureas estrelas

Recamado, passeia majestosa,

C’um compasso na mão a Musa Urânia

Dos Céus medindo a vasta redondeza.

2

Emboca a tuba argêntea a augusta Clio

E faz soar num Pólo e noutro a Fama

Dos Reis e dos Heróis, que sobre-humanas

Obras, em bem dos Povos empreenderam.

3

Calíope, na Liia, em sons medidos

Conta as mesmas acçōes que Clio escreve;

E os Deuses, para ouvi-la, se debruçam

Do Olimpo, no seu Cântico enlevados.

4

Melpómene, a purpúrea, roçagante

Roupa arrastrando, c’o coturno piza

Ceptros, coroas, pelo chão caídas

Das mãos dos crus, dos pálidos Tiranos.

5

E Tália que ri, que sempre mofa,

Com mão maligna, e folgazã lhe rasga

Ao Vício a máscara; e subtis verdades

Com risonho primor enfeita airosa.

6

De murta se engrinalda a branda Erato,

Emprega as mãos em coroar amantes

Co’as rosas de Cítera, e guia as penas

De Horácio, Anacreonte, e de Petrarca.

7

Sobre alcatifas de viçosa relva

Sentada Euterpe, adoça o canto à flauta,

Nas lições dela atentos os Pastores,

A conquistar as Dríadas aprendem.

8

Nova fala mais viva que as palavras

Com que a alma exprima a força dos afectos

Nos gestos dá Polimnia; as mãos, o rosto

Dão mais que vozes, dão as cores da alma.

9

Com destras plantas, levemente airosas,

Terpsicore mil símbolos descreve,

Dá vida, alenta os ânimos que jazem,

C’o inerte peso do Ócio, quebrantados.

in Filinto Elysio, Obras Completas, tomo 1.º, Paris, Na oficina de A. Bobée, 1817.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Andrea Mantegna (1431-1506), Parnasus (1497), da colecção do Museu do Louvre.



Eros ao entardecer — um poema do autor

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Hoje, dispo-me do pudor que habitualmente me acompanha e trago aos leitores um poema meu de desejo e acção ou antes do desejo em acção. E a acção, essa, é uma excelente sugestão para tardes de confinamento.

 

Eros ao entardecer

 

penetrar-te

húmida, expectante

sentir a prisão

do abraço

das tuas pernas nas minhas

colar os corpos

lentamente roçar

na língua o mamilo

sentir retesar a barriga

suavemente mover

o corpo

pele contra pele

entrar e sair

aflorar apenas a ponta da glande

os lábios arfantes

sexo que espera penetrar de novo

os corpos suados

o cheira da axila

rebolar

um sobre o outro num abraço

infinito

rodar sobre ti

beijar os pés

continuar preso

no fundo

lentamente voltar e beijar

os lábios

saborear a língua

cadencia do movimento das ancas

numa repetição

acelerada

e assim continuar

eternamente

desejo

Carlos Mendonça Lopes

 

Abre o artigo a imagem de um meu trabalho digital, Nude BW, sobre uma fotografia que anos atrás fiz.

Negócios num soneto de Vasco Costa Marques

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Negócios e poesia são certamente realidades que improvavelmente se cruzam, a não ser fazer de negócios assunto de poesia, cometimento que de forma brilhante Vasco Costa Marques (1928-2006) consegue no poema que hoje transcrevo.

Não só a dificuldade do assunto é de monta como a forma escolhida, o soneto, no rigor da sua construção é um obstáculo acrescido ao sucesso da empresa. E assim, a urgência de um negócio nas suas múltiplas vertentes fica plasmado num primoroso soneto de inultrapassável ironia.

 

 

De 3 Poemas de “Importação-Exportação”

 

Note que o tempo foge-nos dos dedos,

veloz como um foguete supersónico.

Não podemos perder os barcos gregos:

mantenham-se em contacto telefónico.

 

É de prever a curva do negócio:

conservas para Goa no embarque.

Sonde-me o Ministério e o Consórcio

New Manufactur’s of Lorenzo Marques.

 

Prometa o que quiser, mas verbalmente.

Sinto que está a ser ultrapassado

e isso, meu caro, é a morte de um gerente.

 

Temos de ir mais depressa, mais depressa!

Veja se a Union Bank envia o delegado,

e ature-me esses tipos da Imprensa.

do livro O mundo possível, (1961)

 

 

Pela data do poema e a referência a Goa suponho que o pretexto directo do soneto foi a crise da chamada Índia Portuguesa, com a invasão iminente pela União Indiana dos territórios ainda ocupados por Portugal no sub-continente indiano. É esta a urgência reflectida no assunto do poema e de que a imprensa não devia dar notícia. Podia ser qualquer outro o quadro histórico. O poema não perde um grão do seu brilho formal retirado deste contexto de realidade.

 

 

Nota bibliográfica

Poema transcrito de Maria Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro, antologia da novíssima poesia portuguesa, 2.ª edição revista, actualizada e com uma nova introdução, Livraria Morais Editora, 1961.

 

 

Abre o artigo a imagem de um poster de Willem Frederick Ten Brock de 1936.

 

 

Alguns poemas de J. J. Cochofel

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Poesia, realejo

dos sentimentos que estão

entre o sonho e o desejo

de os não sentir em vão.

in Quatro Andamentos

 

 

Sabemos de que falam os poetas quando os lemos. João José Cochofel (1919-1982) figura de proa do movimento neo-realista e à sua poesia associado, é autor de uma obra poética bem longe da retórica panfletária associada ao movimento neo-realista na imagem corrente. Pode ser exemplo desta distância o poema XII do livro Sol de Agosto:

 

                                     XII

O concreto, o real — coisas que me comovem.

     É sobre os sentidos que vivo debruçado

             — Fácil o que a vida enxerga —

                      o resto é-me vedado.

                                      …

 

 

Poesia de enorme sensibilidade no seu dizer, é servida por uma forma depurada e constantemente preocupada com a eufonia do poema, qual seja o poema Breve:

 

 

Breve

 

Breve

o botão que foste

e o pudor de sê-lo

 

Breve

o laço vermelho

dado no cabelo.

 

Breve

a flor que abriu

e o sol saudou

 

Breve

tanto sonho findo

que a vida pisou.

in 46.º Aniversário 

 

 

Fala-nos esta poesia do desencanto dos dias, do tempo e do seu passar, com luminosas e quase epigramáticas observações:

 

II

Sem desespero

nem alegria,

vai correndo a vida,

esta coisa fria

 

que é a gente erguer-se

para mais um dia

de gato que salta,

de rato que chia.

 

Que é a gente deitar-se

de corpo cansado,

alheio à fragrância

da mulher ao lado.

 

Até indiferente

ao meu cuidado

de me ver assim

tão desencantado.

in 4 andamentos

 

 

III

Vive ao dia a dia,

sem sonhos nem ilusões.

Sonhar é adiar

a fome dos corações.

 

O presente está aqui

ao alcance da mão.

O futuro será

o que fizeres ou não

 

ao sabor do momento

que é a tua razão

profunda e tão certa

como o teu coração.

in 4 andamentos

 

 

É sempre o eu poético, e não as massas ou o “povo”, que está por detrás destas reflexões poéticas, como já a abrir o seu primeiro livro Instantes, aos dezoito anos, o poeta anuncia no poema Pórtico:

 

 

Pórtico

 

Outros serão

os poetas da força e da ousadia.

Para mim

— ficará a delicadeza dos instantes que fogem

a inutilidade das lágrimas que rolam

a alegria sem motivo duma manhã de sol

o encantamento das tardes mornas

a calma dos beijos longos.

 

       (Um ócio grande. Morre tudo

         dum morrer suave e brando…)

 

Que os outros fiquem com o seu fel

as suas imprecações

o seu sarcasmo.

Para mim

será esta melancolia mansa

que me é dada pela certeza de saber

que a culpa é sempre minha

se as lágrimas correm…

in Instantes

 

 

e quase trinta anos mais tarde volta a referir em Os dias íntimos:

 

*

Lasso, triste, venho

do silêncio em mim.

Que escuro o caminho!

Que longe do fim!

 

Indeciso ainda

como um cristal baço;

mas que fome existe

já no meu cansaço!

 

Olho-me por dentro:

que frio, sozinho!

Aqueço-me ao fogo

do comum destino.

Os dias íntimos in 46.º Aniversário

 

 

Feita esta curta viagem termino com dois poemas que sublinham a presença da memória nos dias e no seu passar:

 

VIII

Saudade de qualquer coisa

que a memória, só ela,

realiza ainda.

Lembra e dói 

apenas porque é finda.

 

A manhã sem sol nem música

cria-me melancolia.

— Porque mastigo eu lágrimas que já não sinto

e me vergo em sobressaltos

já alisados pela tua mão?

 

A manhã fria

trouxe-me este absurdo desejo de inverno

em pleno Verão.

in Sol de Agosto

 

 

*

O som

de um piano antigo

atravessa vinte anos

para vir tocar

na minha rua.

 

Que menina será,

a mãe ou a filha,

que veio dar-me

o passado a ouvir!

in Quatro Andamentos

 

 

Nota bibliográfica

Poemas transcritos de:

João José Cochofel, Quatro Andamentos, edição do autor na colecção Cancioneiro Vértice, Coimbra, 1966.

Líricas Portuguesas 3.ª série, selecção, prefácio e apresentação de Jorge de Sena, 2 volumes, 3.ª edição, Edições 70, Lisboa, 1984.

Novo Cancioneiro, edição conjunta dos dez livros publicados na colecção. Prefácio, organização e notas de Alexandre Pinheiro Torres, Editorial Caminho, Lisboa, 1989.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Picasso (1881-1973) de 1971, Busto de Homem escrevendo, da colecção do Museu Picasso de Paris.

Soneto pontudo por Le Sire de Chambley

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Hoje é uma brincadeira erótico-gráfica que trago ao convívio dos leitores: o Sonnet pointu (ou Soneto pontudo como lhe chamei) por Le Sire de Chambley, pseudónimo de Edmond Haraucourt (1856-1941).

O soneto desenvolve-se graficamente em forma de triângulo invertido (base para cima e vértice para baixo). Suspeitando de algum mistério simbólico nessa figura geométrica, dediquei-me à pesquisa de significados por assim dizer esotéricos. E eis que num dicionário de símbolos (ver nota bibliográfica) encontro: “O triângulo com o vértice para cima simboliza o fogo e o sexo masculino; com o vértice para baixo, simboliza a água e o sexo feminino.

Explica-se assim como Picasso (1881-1973) na sua infinita sabedoria, capta tal significado transcendente no desenho que abre o artigo.

Le Sire de Chambley, com enorme subtileza e complexa leitura, põe no poema esse sexo feminino a falar enquanto caminha para o êxtase penetrante que o nome do soneto também evoca. O aguçado do título e a arrumação dos versos em triângulo de vértice para baixo, fazem desta geometria associada ao poema um contributo suplementar na sua decifração. 

Foi essa obra suprema de poesia que certa noite forçadamente desperto, enquanto aguardava do tempo o seu passar, me entretive a trabalhar numa sua versão em português, e que o leitor encontra a seguir. Nada mais vale a pena acrescentar, a não ser, talvez, citar Camões:

Milhor é experimentá-lo que julgá-lo,

Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.

Lusíadas Canto IX, estrofe 83

 

 

 

                            Soneto pontudo

 

  Vem, vem, amante meu!  Abro este meu desejo ao teu;

     Bem vejo como essa tua ânsia aumenta.  Regressa! 

       Sinto-te aí, intenso, duro, fundo dentro de mim…

          Ai!… Sim!… Sim!… Vem, docemente, devagar;

 

             Prolonguemos um pouco este momento…,

                Mantém suave o ritmo desse teu ardor.

                   Ai amor, morro!… Isso,  lentamente,

                      Segue-me neste meu balancear.

 

                          Rápido! Não, mais tempo!

                             Esvaio-me! Ai! Espera,

                                Sim, sim, te adoro…

 

                                   Vá!… vá!… VÁ!

                                      Ainda!… Ai!

                                             Ah !

 

Versão em português por Carlos Mendonça Lopes.

 

 

Poema original:

 

 

                          Sonnet pointu

 

Reviens sur moi!  Je sens ton amour qui se dresse;

 Viens, j’ouvre mon désir au tien, mon jeune amant.

    Là… Tiens… Doucement… Va plus doucement…

      Je sens, tout au fond, ta chair qui me presse.

 

                Rythme bien ton ardente caresse 

                   Au gré de mon balancements, 

                       O mon âme… Lentement, 

                   Prolongeons l’instant d’ivresse.

 

                      Là… Vite! Plus longtemps! 

                            Je fonds ! Attends, 

                               Oui, je t’adore… 

 

                                  Va ! va ! va ! 

                                      Encore. 

                                         Ha !

 

Nota bibliográfica

Soneto original em Le Sire de Chambley, La Legende des Sexes, Poëmes Histeriques, 1882, Impresso em Bruxelas pelo autor.

Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, Editorial Teorema lda, Lisboa, 1994.

 

 

Abre o artigo a imagem de um desenho de Picasso (1881-1973), Fragmento de corpo de mulher (1960), da colecção do Museu Picasso de Paris. 

 

Desejo Louco por Jorge Barbosa

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A espaços trago ao blog poemas de amor e seu desejo. Hoje é um soneto vindo das terras quentes de Cabo Verde, Desejo Louco, inspiração de Jorge Barbosa (1902-1971) quando jovem.

Nunca são inesperados os poemas que dão conta da sedução do corpo e manifestações do desejo, por mais que a imagem pública da obra de um poeta nos remeta para outras atmosferas como acontece com a poesia de Jorge Barbosa e noutra ocasião aqui trarei. No entanto, para dar conta da faceta de preocupação humana e social na poesia de Jorge Barbosa, abro com o poema Prostíbulo incluído no livro Ambiente de 1941:

 

Prostíbulo

 

Era a primeira vez

que vinha

dançar

à marinhagem dos vapores

aquela preta infantil.

 

Seu corpo nu

grácil

que não chegou ainda

à adolescência

estremece 

num ritmo

bárbaro

e quente

aos olhares

daquela gente 

estrangeira.

 

Nem era dança

essa dança

sem mutações:

 

apenas vibrações

e delírios

dos músculos

de um corpo galvanizado…

 

O mulherio da assistência 

bate palmas

ao som

do tom

da música perversa.

 

Sem vidro

o candeeiro

deixa

no recinto

um cheiro

a fumo de petróleo

que asfixia

e se ajunta

ao fumo do tabaco

e ao cheiro da miséria…

 

     E nos olhos da juvenil bailadeira

     havia,

     como coisa esquecida,

     a expressão longínqua

     da ingenuidade

     de uma infância perdida…

 

 

E agora esse Desejo Louco de que fala o título do artigo.

 

 

Desejo Louco

 

Aperta-me em teus braços torneados, 

Aperta-me ao teu seio palpitante!

Ai! deixa-me sonhar, a alma errante 

Pelas regiões do Amor, sonhos dourados!

 

Vê como a noite é calma e enluarados 

Os campos têm cor esbranquiçante… 

Aperta-me nos braços, minha amante, 

Dá-me os teus lábios frescos e rosados… 

 

Como dois pombos, nós assim unidos, 

E lá no Céu, boiando, triste, a lua,

Terá a Vida encantos reunidos!…

 

E eu hei-de-te despir, pra ver-te nua, 

À luz do luar, os seios languescidos… 

— Pra ver a tua carne como estua!…

São Vicente, Cabo Verde

 

Publicado no Jornal da Europa, 22/04/1928

Transcrito de Jorge Barbosa, Obra Poética, INCM, Lisboa, 2002.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do artista brasileiro Lasar Segall (1891-1957), Perfil de Zulmira, de 1928.

 

Alguns poemas de Saúl Dias

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É simultaneamente um pudor de linguagem e um olhar de esteta o que encontramos na curta obra poética de Saúl Dias (1902-1983), pseudónimo do pintor Júlio dos Reis Pereira. O poeta, irmão de José Régio, é conhecido sobretudo como pintor, assinou Júlio, e é autor de uma obra plástica notável. A presença do olhar de esteta reconhece o poeta explicitamente no poema Quieta com que abro esta curta visita à sua poesia, que não é uma estreia no blog. Outros poemas seus encontram-se algures transcritos.

 

 

Quieta

 

Passaste

subtil

na tarde quieta.

 

O ar anil

ondulou…

Como uma seta

uma ave baixou

da velha torre

e pousou quieta.

 

Eu era o esteta

procurando

entre fórmulas mil

o ancoradouro, a meta…

 

Inúteis tentativas!…

 

Tudo passou…

Tudo queimou 

o tempo vil…

 

Só perdurou

o ar anil

da tarde quieta.

 

 

De novo o artista plástico por detrás do poeta se revela neste Desenho de rapariga:

 

 

Desenho de rapariga

 

Corpo suave,

de traços finos,

modulados trinos

ao entardecer…

 

A linha esguia

que delimita

e acaricia

o braço de ave

é tão bonita…

 

Quase mulher…

Quase criança…

 

Toda pureza…

 

— Vede

a beleza

como se enlaça

na sua trança!

 

 

É uma poesia servida por um verso insistentemente despido do supérfluo, como o poeta refere neste poema:

 

Na tarde longa

imaginei um longo poema.

Depois,

fui-o encurtando

e reduzi-o a pequenos versos.

 

Quisera que os meus versos

fossem duas palavras apenas,

aéreos como penas,

leves

como tons dispersos…

 

 

A impalpável e fugaz beleza à nossa volta que acontece, talvez, ocasionalmente pressentirmos, surge em alguns dos seus poemas, límpidos, diáfanos, como as pinturas da sua série O poeta:

 

 

do Ciclo NUA

 

V

 

No meu sono

ela flutua

a cada passo…

 

Nua,

riscando o espaço

numa névoa de outono…

 

Apenas nos cabelos

um azulado laço…

 

E assim enlaço

a imagem sua…

 

 

*

A chama ainda perdura

iluminando a noite,

indo acordar os astros…

 

vestindo de alabastros

as ruas derradeiras…

 

desdobrando bandeiras

lá no topo dos mastros…

 

 

*

Essa figura

que sempre volta sem eu querer,

porque abandona a sepultura

do esquecer

e em rosicler

volve e perdura,

iluminando a noite escura

do esquecer?…

 

Uma vulgar figura de mulher!…

 

 

Refere David Mourão-Ferreira no estudo introdutório à edição da sua obra poética, “… a poesia de Saúl Dias, pela impenitente fidelidade a este pessoalíssimo percurso de decantação, constitui um dos mais delicados e rigorosos aparelhos produtores de encantamento que se nos deparam em toda a longa história do lirismo português;…”. E este encantamento no leitor sente-o o poeta no mundo e pela vida em redor, e que a sua poesia procura captar:

 

 

Do ciclo Poeta

 

I

— Vai!

Corre o mundo

encostado

a um bordão de esperanças!

 

Hão-de ferir-te os pés

as pedras dos caminho.

Mas entenderás a conversa dos ninhos

e o riso das crianças.

 

Afecto

 

Tanto afecto disperso pelo mundo!

 

Um cão que não nos deixa.

 

Uma madeixa

de cabelo emoldurada.

 

O olhar fundo

de uma criança pobre.

 

Versos de António Nobre

guardados numa estante.

 

E um Poeta, sem idade,

sentado num bar,

tentando fixar

em castigados versos

um fugidio instante

de felicidade.

 

 

Termino com dois poemas: Envelhecer e Menino; poemas onde ao permanente encanto pela gente e pelo mundo, se acrescenta o encontro da experiência da vida com a infância dos sonhos:

 

 

Envelhecer

 

É bom envelhecer

 

Sentir cair o tempo,

magro fio de areia,

numa ampulheta inexistente!

 

Passam casais jovens

abraçados!…

 

As árvores

balançam novos ramos!…

 

E o fio de areia 

a cair, a cair, a cair…

 

 

Menino

 

Em mim

a infância permanece,

tal num jardim

o canteiro se aquece

de rosas e alecrim.

 

De encontro ao velho muro

que ruir de ilusões!

 

E eu continuo

a ter medo do escuro

e a sonhar com ladroes!

 

Poemas transcritos de Saúl Dias, Obra Poética, 2.ª Ed aumentada, Brasília Editora, Porto, 1980.

 

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Júlio, Aparição, óleo s/tela, de 1972, da colecção moderna da Fundação Gulbenkian.