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A PESCA LUMINOSA

Poema cósmico em dois quadros

– Nos carrapitos da lua

– A Pesca luminosa

Numa noite de verão, à beira-mar,

Senti a tentação de ver a lua ao pé…

Abri a janela, comecei a trepar,

 

– E encarrapitei-me nos carrapitos dela…

 

Tive então outra ideia genial:

Naquela posição excepcional

Porque é que não havia de pescar?…

 

Arranquei um cabelo ao luar,

Fiz dum gancho da lua, o anzol,

Atirei-o ao ar – e apanhei o sol.

(pag. 51)

 

Surpresa deslumbrada é como posso descrever o encontro, ontem, nas prateleiras de uma livraria, com a poesia de Eduardo Libório (1900-1946).

Uma linguagem poética de desarmante singeleza prende-nos pelo encanto e inesperado de temas e ideias, enunciadas com uma limpidez de cristal.

Ecoam aqui formas do que viria a ser alguma poesia surrealista surgida bem depois da morte do poeta ocorrida em 1946 ( a primeira reunião do Grupo Surrealista de Lisboa realizou-se em fins de Outubro de 1947, na pastelaria A Mexicana). Nomeadamente, é alguma poesia de Alexandre O’Neill que me ocorre ao ler grande parte destes poemas.

 

POEMA GIRATÓRIO,

COM “FIGURAS DE PASSAR”,

DEDICADO PELO LIBÓRIO

A QUEM O QUEIRA ACEITAR

Passa a trisreza, a dor, passa o cuidado,

Passa o prazer – o amor passa também…

– E passam as saudades do passado

Se no passado não passou alguém…

 

Ilusões – esperanças passageiras,

Passos falsos – e “passas” verdadeiras,

Pássaros, Passarões – e Passarolas

Uns à solta e outros em gaiolas,

Todos vão, de passagem, pelo ar…

 

Passam, a passear, os mensageiros

De mensagens passadas – e a passar…

Passam na vida, a passo, os passageiros

Para o mundo onde havemos de voltar…

 

Passam dúvidas, fés – passam certezas

Do que já se passou – ou vai passar

E, por vezes, perpassam baronesas

Num passeio, de passagem – a girar.

(pag. 72)

 

 

A ideia do fluir do tempo que subjaz ao POEMA GIRATÓRIO, regressa em diferentes épocas e de variados pontos de vista, quais sejam:

 

 

O HOMEM

O menino começou

À espera que a vida chegasse…

A vida chegou

– e o menino ficou à espera…

 

Que bom que era,

Se ela viesse ter comigo…

Há tanta coisa que a vida tem:

Gente que vai… Gente que foi… Gente que vem…

Que bom que era, se ela viesse!…

Oh! Quem me dera!…

 

A vida veio

– E o menino ficou à espera…

(pag. 115)

 

 

 

HISTÓRIA DO HOMEM QUE TINHA UM RELÓGIO

 

Foi assim que a história começou:

 

 

Era uma vez um homem que tinha um relógio.

Dava corda ao relógio, o relógio andava, o tempo passava,

E o homem ficava a olhar,

O relógio a andar, e o tempo a passar.

 

 

Mas um dia o homem não deu corda ao relógio:

O relógio parou – o tempo passou.

 

 

Então o homem nunca mais deu corda ao relógio.

 

 

E foi assim que a história acabou.

(pag. 47)

 

 

Acrescento outro poema:

 

Eu não sei o que hei-de fazer…

Se ando depressa, o tempo parece que quer parar…

Se ando devagar, é o tempo que passa a correr…

 

 

O tempo é que vai dizer:

 

 

“Vai mais depressa!…

Vai mais devagar!…”

 

 

Mas o tempo não quer falar,

– E eu não sei o que hei-de fazer…

(pag. 149)

 

E já agora também:

 

O VIAJANTE

Gosto tanto de sonhar

– E de dormir…

Esquecer o tempo que passou

E não pensar no que há-de vir…

 

Viver a vida verdadeira

A noite inteira:

Fechar os olhos – e partir…

 

Tudo em silêncio, tudo apagado,

E eu, suspenso,

Maravilhado

A espreitar o que está do outro lado…

 

Se me esquecesse de voltar…

 

Oh! Se pudesse ficar assim,

Horas sem fim

Sem acordar.

A viajar dentro de mim…

(pag. 65)

 

 

Com este O VIAJANTE, passamos para outro dos temas desta poesia, presente ja em A PESCA LUMINOSA: o desejo de evasão e a fantasia no regresso a um território de infância:

 

 

LENDA DA MENINA FLOR EM BOTÃO

No meio das flores perfumadas

Do misterioso jardim,

Entre as papoilas encarnadas

Do canteiro de alecrim,

Desabrochou certa manhã de verão

Uma flor maravilhosa

E esquisita:

Uma flor mais bonita

Que a Rosa-do-Japão.

 

Nasceu, sorriu,

Olhou assim…

E toda a gente viu

Que aquela flor não era igual

Às outras flores daquele jardim…

 

Tinha o olhar azul e transparente,

Como as águas de luz e cristal

Dos mares do Oriente.

 

Não a vêem do outro lado da moldura

Com o cestinho de costura

Na mão?

– Esta menina pequenina

É Leonor

A menina-flor em botão.

(pag. 80)

 

 

BERCEUSE

O menino adormece, feliz e risonho

E o Anjo da Guarda vem, de mansinho,

E leva o Menino para o país do Sonho…

 

Através do céu estrelado,

Vão assim, as criancinhas,

Numa ascensão e num sorriso,

Para o país distante que está do outro lado,

– Lá onde fica o Paraíso…

 

E a mãe, junto do berço, olha o menino e fica a pensar:

“O céu é tão lindo!

Se ele ma vai por lá ficar!…”

 

Então a Virgem, que também sabe o que é ser mãe,

Trás o menino feliz e risonho,

Desse país distante que é o País do Sonho…

(pag. 82)

 

Constituindo um conjunto homogéneo com o propósito de oferta, o grupo de poemas JARDIM é na verdade um Bestário, temática muito pouco vulgar na poesia da época. É possivel que o autor conhecesse os poemas do bestário de Apollinaire, musicados por Poulenc.

Dos catorze poemas que o compõem, escolho quatro:

 

A GIRAFA

Ó Mãe,

Porque é que a girafa tem

O pescoço assim?…

É para a gente saber

Que bicho é, não é,

Ó Mãe?…

 

Pois já se vê que sim,

Pudera!…

Se não fosse o pescoço que ela tem

Não se sabia bem

Que bicho era…

(pag. 93)

 

 

 

OS MACACOS

Os macacos não são homens

Porque não sabem falar…

Mas quando estão distraídos

Parecem homens a pensar…

(pag. 95)

 

 

OS CARACÓIS

São adivinhos

Disfarçados…

– É por isso que eles têm dois pauzinhos

Com olhinhos

Erguidos para o ar…

 

Há tantas maravilhas escondidas,

Tantas coisas perdidas, esquecidas…

– São essas coisas que eles querem encontrar…

(pag. 101)

 

 

O PAPAGAIO

Não é homem por um triz:

Até na voz

É como nós

Fala, não pensa – também não sabe o que diz.

(pag. 103)

 

 

 

E com esta lapidar definição do género humano avanço para a escolha final com alguma poesia irreverente:

 

 

HISTÓRIA DO HOMEM QUE ATIROU A BOLA AO AR,

E FICOU A OLHAR COMO QUEM JÁ ESTAVA

A VER O QUE IA ACONTECER

I

O homem atirou a bola ao ar

E ficou a olhar,

Como quem já estava a ver

O que ia acontecer…

II

A bola ficou no ar,

E o homem ficou a olhar,

Como quem já estava a ver

O que ia acontecer.

(PAG. 70)

 

 

 

PRISÃO DE VENTRE

Toda a gente

Mente

Quando diz que tem prisão de ventre

 

A prisão felizmente

Não é à frente

É do lado oposto

Do rosto

 

A outra face da fachada

É que está tapada

 

O verdadeiro

Carcereiro

É o traseiro

(pag. 64)

 

 

A esta ironia acrescento dois retratos de mulher:

 

Não era uma “menina fina”,

Mas também não era uma “menina vulgar”

Tinha certo ar de distinção

Que não era de esperar

Em pessoas da sua condição.

 

Quer fosse bem, quer fosse mal,

Nunca escutava…

Mas ouvia com atenção tão natural

Que, sem querer,

Nos fazia pensar no que ficava por dizer…

 

Diziam, a meia voz:

“Coitada!…”

 

– Ela olhava para nós,

E não dizia nada.

(pag. 141)

 

 

TIROLINA I

Tirolina

A minha amante,

Não é uma menina

Petulante

Nem uma mulher fatal

 

Tem uma boca bestial,

Com dentes de camelo,

E um sinal peludo

Com caracóis e tudo

De cabelo…

 

Tirolina

Tem a forma estranha – e curiosa –

Duma montanha

De gelatina

Cor-de-rosa…

 

A voz guinchante

De Tirolina

Tem qualquer coisa de gemebundo

Que faz lembrar

A buzina

Apavorante

Que há-de tocar no “fim do mundo”…

30 de Novembro de 1935

(pag. 61)

 

TIROLINA II

Tirolina a minha amante

– Que gordura!…

Parece mesmo um elefante,

Uma colina oscilante

De fressura,

Uma vasta montanha

De gelatina e banha,

– Que ternura!…

 

Usa baton, usa “Komol”, usa carmim…

– Mas é bela

E gosto dela

Assim.

(pag. 62)

 

 

Encerro a visita com o poema que de alguma forma condensa o prazer inesperado deste encontro, …/ – Achei uma coisa que já não há

 

 

AMIZADE

Alguém um dia me perguntou:

– o que é que achou?

– Eu não achei coisa nenhuma…

– Nem sequer uma?

Vá, diga lá…

– Pensando bem, talvez achasse…

– Então falasse…

– Achei uma coisa que já não há…

(pag. 71)

 

Eduardo Libório (1900-1946) músico de profissão e artista multifacetado, era até Dezembro de 2010 um poeta desconhecido do público, quando a sua poesia acompanhada por cartas e desenhos, saiu na INCM, na colecção arte e artistas.

O corpus poético é um conjunto de menos de 80 poemas, reunidos por Gil Miranda, que preparou e organizou a edição.

É também de Gil Miranda a noticia biográfica com que abre a edição dos poemas, desenhos e correspondência, rigorosa e culturalmente informada.

É uma edição modelar e um serviço impar prestado à cultura portuguesa, que a partir de agora conta com mais um poeta de vulto.

Nota importante: Nenhuma das imagens que acompanham o texto é obra de Eduardo Libório.